quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Um ‘terceiro olho’ na palma da sua mão

ORIGINAL: LINK - Estadão

WASHINGTON ALVES/AE
Rodrigo Pazzini e Igor Amin são os responsáveis por Moysés, Dentista, vídeo que ficou entre os 20 melhores do festival Pocket Films

Não importa a qualidade técnica; o barato de filmar com o celular é a chance de experimentar uma nova linguagem

Gustavo Miller

No filme Labirinto do Fauno (2006), de Guillermo del Toro, o Pale Man, um dos monstros mais assustadores da história do cinema, é um ser que possui olhos postiços nas palmas das mãos. Com os globos oculares nessa posição, o monstrengo consegue ter uma visão diferenciada para perseguir as crianças que roubam os doces de sua mesa de jantar.

Obviamente que o acontece com um celular na mão não é nada assim tão assustador, mas cabe a associação. “O celular é hoje o nosso terceiro olho. Ele permite ângulos e pontos de vista que uma câmera maior jamais permitirá. É quase um olho que você joga na palma da mão”, diz Giselle Beiguelman, professora de pós-graduação na PUC no curso de criação com meios digitais.

Realmente, o que se nota nos trabalhos de vídeo feitos com celulares é a particularidade da filmagem. “Ele trouxe uma nova captação e mudou a posição do telespectador em relação à câmera”, diz Eliseu Lopes Filho, professor de cinema da Faap. “Como ela fica distante do olho, a câmera passa a estar dentro da narrativa e liberou o compromisso que existia antes com a imagem”, continua.

Essa nova linguagem audiovisual vem atraindo de amadores a profissionais que se interessam por novas mídias. E, segundo Eliseu, o celular atrai por ser um retrato do cotidiano. O publicitário Thiago Valente, de 24 anos, percebeu que com o seu celular podia registrar pequenas particularidades do dia-a-dia que passam despercebidas pelos olhos das pessoas.

Começou assim: ao pegar um taxista que adorava contar piadas, Thiago sacou o celular do bolso para registrar aquele momento. Seu amigo Hugo gostou da idéia e, dias depois, filmou duas senhoras tricotando um gostoso bate-papo dentro de um trem do metrô no Rio.

A brincadeira virou a série “O Rio de Janeiro pelos olhos de um celular” e, segundo Thiago, ele já recebeu mais de dez vídeos de outros internautas que fizeram trabalhos parecidos com o seu.“É o espírito coletivo da internet. Hoje qualquer um pode registrar as suas idéias e virar editor de si mesmo”, comenta.

Trabalho similar tem a documentarista Consuelo Lins. Em 2005, ela produziu Leituras/Lectures, um curta que traz trechos de leituras feitas por passageiros em trens e metrôs na França. Consuelo filmou várias pessoas lendo, sem que elas se dessem conta. Depois, ao pedir autorização para usar a imagem, pediu para que elas lessem, em voz alta, um trecho do livro. Na edição, som e imagem foram superpostos, dando a sensação de que a narrativa acontecia dentro da cabeça das pessoas.

“Quis fazer algo que tivesse conexão com o fato de estar com um celular o tempo todo, essa coisa prática”, diz. Além disso, a filmagem só foi possível graças à discrição do celular. Leituras/Lecture foi selecionado para participar do Pocket Films de 2005, festival francês de vídeos feitos por celulares,que é considerado o maior do mundo no gênero (leia abaixo). Na escolha dos 400 filmes do evento, Consuelo ficou em 13º.

Já o administrador Osmar Veiga, de 22 anos, usa o seu aparelho para registrar flagrantes do dia-a-dia, como o incrível cachorro que come repolho e mexerica. “A idéia é registrar algum momento que não vai acontecer mais. É normal andar com um celular na mão; já com uma filmadora, não”, diz.

PRECONCEITO
Imagine a cena: você entra na sala de espera do dentista e vê uma cestinha de palha com uma rosa dentro. Ela está colocada em cima de um banco e traz um bilhete com o seguinte recado: “Oi, eu sou o Moysés! Cuide bem de mim! =)”. Pergunta: você não ficaria com medo?

É justamente esse o mote do ótimo vídeo Moysés, Celular, dos estudantes de Comunicação Igor Amin e Rodrigo Pazzini. O vídeo é simples, não tem edição e busca trabalhar com a idéia do público/privado. “A gente já tinha um grupo que debatia mídia móvel. Com os celulares na mão, colocamos a discussão em prática”, explica Igor.

Segundo ele, a proposta é brincar com a idéia do contemporâneo, como o medo generalizado do terrorismo. O filme ficou entre os 20 finalistas do Pocket Films deste ano.

São justamente premiações assim que servem para reduzir um pouco o preconceito em relação aos vídeos feitos com celulares. As críticas em relação a esse formato são sempre as mesmas: a imagem da qualidade é ruim, o áudio é péssimo e, para piorar, apenas serve para ser transmitido em uma telinha.

“A gente precisa abrir um pouco a mão dessa cultura da alta definição e da baixa definição. Cada resolução tem a sua estética e essa foi a grande revolução que a internet ensinou”, diz Giselle.

Para o professor Eliseu Lopes Filho, sua nova geração de alunos já encara a imagem em tela pequena e em baixa resolução como algo normal. E a tendência é que essa nova linguagem vá cada vez mais amadurecendo, principalmente com a melhoria do equipamento.

“Antes era fácil identificar o material feito pelo celular. Hoje a qualidade da imagem e do áudio está tão boa que o resultado é similar ao de uma câmera amadora”, diz Demian Grull, diretor de programação e produção do Fiz.TV. O passo já está dado.

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